Falecido em 2014, empresário teria mantido esquema de aliciamento de crianças e adolescentes para a exploração sexual dentro da icônica sede da empresa, em São Caetano do Sul, além de outros locais em Santos, São Vicente, Guarujá e Angra dos Reis
Uma história de violência sexual na infância marcou para sempre a trajetória de Karina Lopes Carvalhal, hoje com 40 anos. Aos 9, ela soube pelas irmãs que um grande empresário de sua cidade natal, São Caetano do Sul (SP), dava dinheiro e presentes a crianças e adolescentes que fossem à sede da empresa na av. Conde Francisco Matarazzo, número 100. À época com 12 anos, a irmã mais velha de Karina avisou que poderia conseguir um tênis novo se fosse até lá. “Eu não tinha um tênis pra pôr, usava o das minhas irmãs, meus dedos eram todos tortos.”
Karina subiu até o andar da presidência e esperou até ser chamada ao escritório particular do dono. Ficou surpresa ao ver um senhor, já na casa dos 70 anos. “Minha irmã tinha me dito: ‘Ká, não se assuste porque ele vai te dar um beijinho’. Mas ele me cumprimentou e já passou a mão nos meus peitos. Ele dizia: ‘Ah, que moça bonita. Muito linda’”, relembra, imitando o sotaque polonês do empresário Samuel Klein, fundador da Casas Bahia, uma grande rede do varejo brasileiro. Ela saiu levando consigo uma quantia em dinheiro e um tênis da marca Bical. Era 1989.
“A gente ficava contente que tinha ganhado um tênis. Não tínhamos noção dessa situação de violência”, avalia Karina ao falar com exclusividade à Agência Pública. A possibilidade de conseguir outros bens materiais a fez voltar nas semanas seguintes. “A segunda vez, ele já me levou pro quartinho.” Ela conta que o empresário mantinha um quarto anexo ao seu escritório, onde havia uma cama hospitalar. Era ali, segundo ela, que ocorriam os abusos.
Karina não teria sido a única a ser aliciada e explorada sexualmente por Samuel Klein. A Pública ouviu mais de 35 fontes, entre mulheres que o acusam de crimes sexuais, advogados e ex-funcionários da Casas Bahia e da família.
Entre 1989 e 2010, Samuel Klein teria sustentado uma rotina de exploração sexual de meninas menores de 18 anos dentro da própria sede das Casas Bahia, em São Caetano do Sul. No detalhe, a rua em frente à sede das Casas Bahia foi rebatizada com o nome do empresário.
A reportagem, que pode ser lida na íntegra no site da Pública, consultou também processos judiciais e inquéritos policiais e teve acesso a documentos, fotos, vídeos de festas com conotação sexual e declarações de próprio punho das denunciantes, além de gravações em áudio que indicam que, ao menos entre o início de 1989 e 2010, Samuel Klein teria sustentado uma rotina de exploração sexual de meninas entre 9 e 17 anos na própria sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul, e em imóveis de sua propriedade situados na Baixada Santista e no município de Angra dos Reis (RJ).
O empresário teria organizado um esquema de recrutamento e transporte de meninas, com uso de seus helicópteros particulares, até mesmo com a participação de funcionários na organização de festas e orgias, pagas com dinheiro e produtos de suas lojas. A partir das denúncias mais recentes envolvendo o filho do patriarca da família Klein, o empresário Saul Klein, investigado pelo Ministério Público do Estado São Paulo (MP-SP) por aliciamento e estupro de dezenas de mulheres, a reportagem foi atrás do passado de Samuel e encontrou histórias semelhantes às práticas descritas pelo MP-SP na investigação sobre seu filho.
Samuel Klein morreu em 2014, deixando uma imagem quase heroica. Nascido na Polônia em 1923, perdeu a família em um campo de concentração. Emigrou para o Brasil na década de 1950, quando começou a vender produtos em uma charrete. Anos mais tarde, fundou a Casas Bahia, hoje parte do conglomerado Via Varejo, com faturamento médio anual de 30 bilhões de reais.
Mas “o rei do varejo”, como ficou conhecido, foi acusado por diversas mulheres de praticar abusos sexuais e de exploração de crianças e adolescentes. Um desses casos é o de Renata*, que afirma, em processo ao qual a Pública teve acesso, ter sido estuprada pelo empresário quando tinha 16 anos. Renata contou à polícia que em outubro de 2008 foi à casa de praia do empresário em Angra dos Reis. “Ele me pegou a força, rasgou minha roupa e me violentou. Não adiantava gritar”, diz um trecho do depoimento. Na época, Samuel Klein reconheceu, em depoimento à Polícia Civil de São Paulo, que Renata e sua colega estiveram na casa dele em Angra dos Reis, mas disse que as moças não eram “menores de idade”. Renata não quis dar entrevista. A Pública buscou, ao longo dos últimos meses, contato com 26 mulheres que moveram processos judiciais, além de outras que não o processaram. Dez mulheres concederam entrevistas, a maioria pediu para não revelar a identidade por medo de retaliação. Três entrevistadas, porém, concordaram em ter seu nome divulgados.
Nos relatos, abusos na sede da empresa
Segundo os relatos, após um primeiro contato, que frequentemente já incluía abusos sexuais, mulheres e meninas eram selecionadas para participar de festas do empresário nas suas propriedades, como os apartamentos em São Paulo, no edifício Universo Palace, em Santos (SP), na Ilha Porchat, em São Vicente (SP), uma casa em frente à praia da Enseada, em Guarujá (SP), além da mansão no Condomínio Porto Bracuhy, em Angra dos Reis.